Este ano Pedrinho se esforçava para ouvir o padre velho,
gordo e efeminado na missa de natal, ao invés de pensar no porco recheado
(semelhante ao padre, aliás), no refrigerante à vontade, nas frutas sobre
a mesa que, se não eram gostosas, ao menos eram muito bonitas e que só se via
naquela data e, claro, os presentes todos que aguardavam sob o pinheirinho de
plástico, mais parecido com um limpador de privada.
A igreja sempre o impressionou. O templo inspirava uma
fuga de tudo o que vivia. Os padres travestidos, as pessoas cantando juntas aquelas
canções arrastadas, todas sentando e levantando ao mesmo tempo, as velas...
tudo era tão diferente do cotidiano! O garoto fitava as imagens todas exalando dor e angústia, e se sentia culpado. Não sabia bem porquê, mas acreditava que deveria compartilhar aquele sofrimento com elas.
E Pedrinho lutava pra abstrair de tudo isso, como
lutava para compreender as palavras do homem de vestido. Afinal, é o que se
espera de um rapaz de 13 anos, não? Que ouça a missa, compreenda e garanta um
lugar no céu e na poltronas da sala, quando recebessem visitas. E não contente
em ser fanho, o padre falava baixo. Será que era de propósito, para
testá-lo?
Portanto, deveria compreender a tudo. Se não, não
era homem feito ainda. Entre um amém e um hosana, o garoto olhava para a mãe,
esperando a aprovação complacente da mulher, orgulhosa de seu homenzinho. Ela precisava de um
homem na casa, e Pedrinho poderia enfim proteger às irmãs e à mãe. E tudo
dependia, entre outras coisas, de entender as palavras de Deus.
Como já era costume na capela, o sermão não se
restringia ao nascimento do Filho de Deus, mas narrava toda a saga até sua
ressurreição. Com boa parte já tratada, ali pela hora da crucificação, o
rapaz flagrou-se com uma dúvida que o perturbou. Não era pela pergunta especificamente, mas pelo fato de que talvez não estivesse entendendo o suficiente aquele
sermão para adultos.
Mãe - ele a puxa de leve pelo ombro - , Jesus sabia
mesmo que iria morrer?
Sua mãe, sem dar muita bola, responde que sim,
Jesus sabia que morreria. Era a confirmação que Pedrinho esperava:
Mas ele conseguiria não morrer, né? Ele era filho
de Deus, e fazia os milagres que queria...
A mulher, visivelmente constrangida pela conversa
em hora inoportuna, afirmou rapidamente que sim, Jesus era todo-poderoso e
poderia sair daquela situação.
Não era possível que o carpinteiro divino não
tivesse pensado nisso, já que era filho de deus, e provavelmente o homem mais
inteligente do mundo. Além disso, Pedro já tinha dado a ideia, os guardas já
tinham desafiando-no a descer da cruz, e assim ele provaria pra todo mundo que
realmente era o super-herói judeu. Então não era esse o motivo.
Mas mãe - ele emendou, e viu a mulher bufando
impaciente - Jesus então escolheu se suicidar?
A escolha das palavras não poderia ser mais
reveladora da cabeça do guri.
Como assim, se suicidar, filho???, interrompeu ela,
alterada a ponto de levantar mais a voz e atrair alguns olhares curiosos.
Porque ficou brava? O garoto só estava querendo
entender. Será que não estava pronto pra ouvir as palavras do padre? Digo, se
Jesus sabia o que iria acontecer, tinha todo o poder pra mudar a situação, e
poderia escolher, e escolheu morrer, era como se estivesse usando os outros
para se matar. Como se o garoto, palmeirense como o avô e os tios, entrasse
uniformizado na organizada do Corinthians e xingasse todo mundo e esperasse ser linchado.
Era uma morte escolhida, e portanto um suicídio. O caso de Jesus ainda mais,
porque ele poderia sair daquela situação em qualquer momento que quisesse.
Jesus era um kamikase, um homem-bomba taleban.
Filho, Jesus morreu por todos nós! - ela disse,
como se fosse a coisa mais lógica do mundo, ao que o garoto prontamente
respondeu que seria muito mais proveitoso pro mundo que Jesus permanecesse
vivo, fazendo milagres e pregando o amor por mais tempo. Afinal, o jornal da
noite, as ruas cheias de gente largada, a maldade das pessoas, mostravam que o
que ele ensinou não parecia ter feito muita diferença. Imagina o quanto de
gente ele poderia ajudar, curar, ensinar...
A essa altura, a irritação da mulher não era mais
vergonha de chamar atenção da paróquia. Que absurdo, questionar Jesus assim! Um
garotinho que mal saíra do colo! Filho - disse indignada -, Jesus não se suicidou, ele
morreu para que nós não morrêssemos! Para nos salvar!
O garoto então sorriu, concordando. Tudo o que disse foi um "entendi" cheio de significado, como se tivesse ligado um
interruptor na cabeça. A mãe retribuiu com juros a expressão de satisfação,
apertou a mão do guri aliviada e voltou a escutar a missa.
Pedrinho entendeu meio que tacitamente que crescer
talvez fosse isso, dissimular dúvidas e medos genuínos, fingir que está tudo
sob controle. E voltou a ouvir a missa também, agora feito homem.