10.11.13

POST 12. CRISTINA

        Nada, dentre todas as coisas mais belas ou mais imundas, nada me despertou atenção tão vítrea quanto os olhos de Cristina. Se antes meu olhar divagava vagabundo por aquela festa meia boca, à música desnecessariamente alta e às mulheres entediadas por péssimas companhias masculinas, foi no contato com aquele azul de águas paradisíacas que num estalido soube que havia algo maior e melhor que a mediocridade humana.
        Ela era um oásis naquele ambiente pestilento. A luz que emanava daqueles faróis em seu rosto me atraíram de forma irresistível. Apesar de mariposa embasbacada, não tive grande dificuldade em cumprir todo o ritual que se espera: paguei um drink, puxei assunto e procurei me esquivar do óbvio. Mas o óbvio soava como uma sirene em uma biblioteca de asilo, e quando me dei conta, estava louvando seus olhos abençoados. Conversamos amistosamente até que ela ficasse bêbada. 
        Não a chamei pra voltar pra casa comigo.
        Dias depois, encontrei aqueles olhos numa lanchonete do bairro. E nem por um momento acreditei que fora um lance de sorte. Eu sabia que ela morava na região, e passei a desviar para ali meu caminho rotineiro: a expectativa compensava o esforço de caminhar mais algumas quadras. Além disso, e considero de longe o mais determinante, meu desejo em revê-la era tão forte que não havia possibilidade de isso não acontecer. Era como a certeza em Deus, na morte ou na roleta. 
        É importante que eu explique que até essa série de fatos, jamais tinha me apaixonado por uma mulher. E já tinha estado com muitas. Não entendo a dificuldade que alguns homens tem em conseguir companhia. As mulheres imploram por atenção, por alguém que as admire ou ao menos fique excitado com suas tentativas em seduzir, e demonstram isso o tempo todo. É necessário duas orelhas e um sorriso na boca para levá-las à cama. Umas buchas de coca também são muito úteis, especialmente para as que costumo foder. E se há algo de asqueroso em como retrato as coisas, quero que fique claro que não tenho qualquer desprezo às mulheres em especial, não tenho qualquer desprezo que não tenha também a qualquer homem. Meu asco e insolência são generalizados. Como poderia ter qualquer reserva ou hesitação para tratar com pessoas, todas tão semelhantes a mim! Tão familiares em sua inclinação ao roubo, ao vício, ao sadismo! O fato é que, como indivíduos, negamos essas semelhanças funestas, e nos apegamos a particularidades justamente por sabermos o quanto todos os aspectos são iguais até o ponto do absurdo. É por isso mesmo, por exemplo, que as artes tem tão grande alcance: partem da mente o autor, ou seja, falam do particular, que nada mais é que um fragmento de pleonasmo do mundo, e num segundo momento as pessoas sentem-se representadas, todas elas, porque o particular é uma ilusão que preenche a consciência individual, e tudo o que existe é a repetição de erros, conceitos, formas de vida e sentimentos. Por isso não sinto qualquer receio ao lidar com quem quer que seja.
        E não posso dizer de forma alguma que cruzar meu olhar mundano ao de Cristina tenha-me feito mudar de pensamento. Ao contrário, apenas o reforçou. Cristina era a exceção por excelência, via em seus olhos a alma mais honesta e cândida que sabia jamais encontrar novamente. 
        Cristina falava muito, e a atenção que eu dava a encorajava a falar mais. Era nítido como chamava a atenção dos homens à volta, e apenas por um momento pareceu-me que era exatamente o que ela queria. 
        Saímos mais algumas vezes, e Cristina se decepcionou quando falhei em fodê-la. Aprendi rápido: tinha de imaginar qualquer outra mulher em seu lugar. O que ela talvez não entendesse é que o sexo depravado que tanto gostava negava toda pureza de seus olhos e a alvura de cântico eclesiástico de sua pele uniforme. Assim, nunca comi Cristina, e fodi tantas mulheres enquanto só saía com ela. 
        Aos poucos, fui descobrindo em Cristina uma mulher fútil, promíscua, tão ordinária quanto qualquer outra. Passou a mentir sobre onde ia, com quem estava e todas essas questões que em outros tempos jamais me passaria pela cabeça perguntar. Aceitava suas respostas infantilmente: era de suma importância que eu acreditasse. Um Tomé às avessas. 
        Num sábado à tarde, ela bateu na porta do apartamento. Marcas roxas e arranhões nas costas mal cobertas pelo vestido, a maquiagem borrada fazia dela um palhaço deprimente. E foi em um lampejo que vi Cristina como humana. Sua figura angelical não era mais a materialização de sua virtude, mas uma insuportável incoerência. Ela era a santa que fodia e continuava virgem, eu havia caído numa mentira de 2000 anos. 
        Ela passou a me explicar de forma muito nervosa e confusa, sendo interrompida por repentes de choro e soluço, que saiu com um cara que conhecera na mesma noite, e que já na casa dele, foi estuprada por mais dois caras até apagar e acordar largada na auto estrada de madrugada. Veio direto pra minha porta, antes mesmo de chamar os porcos. 
        Pedi que ela esperasse no sofá, enquanto pegaria um copo de água. Na cozinha, minhas pernas tremiam de forma incontrolada. Imaginava como numa sequência de fotos ela se divertindo com o cara da forma mais asquerosa possível, a forma que sempre me neguei a me divertir com ela. Imaginava aqueles olhos, aqueles olhos que poderiam me salvar, corrompidos por essa mulher imunda. Como tinha coragem de profanar seu corpo e sua alma, como uma mulher comum? Ela era o messias que nunca viria, toda esperança de bondade, pureza e amor que outrora me soavam como mitos inverossímeis da boca de religiosos ou das campanhas burguesas de fim de ano. E aqueles olhos continuavam lá, mentindo pra mim, tirando toda ordem e coerência da história da miséria humana, a ordem podre que eu já conhecia, da qual sabia exatamente o que esperar. 
        Voltei com o copo com água e estendi a ela, num dos raros momentos em que as ideias se embaralham a tal ponto que mesmo segundos depois não sabemos dizer o que estávamos pensando. Cristina, sentada e ainda chorosa, fitou meus olhos, que me encantavam pela última vez. Como um bicho que sabe que será morto, ela arregalou ainda mais aquelas bolitas de engodo, o objeto de minha desgraça. Maldita medusa, foste desmascarada! 
        Olho a faca  suja até o cabo, pingando devagar. O sofá absorve com dificuldade o sangue que  escorre da cavidade ocular completamente oca de Cristina. Espero pacientemente que os gritos tragam a polícia, isso não importa. O cosmos volta à ordem, Cristina volta a ser só Cristina.