19.7.14

POST 20.

I
      Eram 22h30 e todos os alunos se precipitaram à saída da sala, impacientes. Ora, se há algo que Roberto constatou nos vinte anos que lecionava é que, não importava a turma, dez minutos a mais de aula eram suficientes para infligir neles tormentos de tortura chinesa. A juventude é uma época estranha, pensou sem refletir, enquanto a manada disparava para fora. E apesar de sentir a rapidez dos anos e sua própria juventude muito próxima na memória, o fato é que sentia-se tão mudado desde a época de graduando que mal compreendia atitudes como aquela, que outrora vivenciara também. Era agora outra pessoa, em absoluto.
      No auge de seus 50 anos, o professor universitário gozava a plenitude de sua idade. Seu imutável comedimento satisfeito era espelho lógico da vida, que até ali, passara macia, leve e regular como as estradas arborizadas e de bom asfalto que levam aos subúrbios classe média-alta. Não se pode dizer que tenha passado por grandes conflitos ou dúvidas. Ao contrário, suas decisões mais importantes pareciam como que trazidas pelo vento, e lhe cabia seu cumprimento, numa espécie de crença rudimentar em um destino sempre favorável. A escolha pelo curso, pela ênfase nas pós-graduações, a saída da casa dos pais, a escolha da mulher de sua vida, o planejamento familiar, a concepção do único filho, cada grande amigo de longa data, o divórcio amigável, os investimentos imobiliários seguros, tudo parecia levá-lo por correntezas suaves. Dessa forma, não havia qualquer motivo para saudosismos: sua vida fora uma agradável e controlada preparação para o passo imediatamente posterior.
     Nenhuma destas considerações passava pela cabeça de Roberto quando, ao guardar lentamente suas coisas na mochila após a sala se achar vazia, notou um papel amarelo gema dobrado e caprichosamente deixado sobre a pilha de livros. Eram raras as vezes em que alunos tímidos pediam abono de faltas ou um trabalho para recuperar nota. Com efeito, poderia contar nos dedos. Também não era de todo inesperado: em toda turma havia bichos-do-mato, e o professor padecia do mal comum de seus colegas de profissão de nunca abrir e-mails. Assim, bilhetes lamuriosos, que tentavam compensar a ausência da possibilidade de convencimento através da conversação com altas doses de vitimismo piegas, por vezes apareciam sobre suas coisas. "Deve ser do cara estranho do fundo da sala. Só conheço a voz dele das vezes em que responde a chamada". Voltou a sentar na cadeira, porque não tinha pressa e esperava um texto mais ou menos longo e confuso (alunos desse tipo não tem ideia de como se reportar a um professor).
Professor, me ligue. XXXX-XXXX. Beijos!
      Nenhuma assinatura ou qualquer tipo de identificação. A letra parecia ser feminina, mas não era identificável a ponto de se conseguir ligar a alguém. O professor ficou atônito por alguns momentos, sentiu suas orelhas formigarem. Caiu em si e olhou em volta, caminhou a passos largos até a porta: não havia ninguém no corredor: o único sentido que uma brincadeira daquelas poderia ter seria justamente poder ver a reação do professor. Não estava ali quem tinha lhe pregado a peça. Eliminada essa possibilidade, o bilhete deveria ser sério. E o que fazer com aquilo? Roberto não sabia. Ficou com o bilhete aberto nas mãos, sem pousar o pensamento em nada. Ao diabo, finalmente pensou, enfiando com raiva os papéis e os livros e o bilhete na mochila.
      Absorto com as formas que se dissipavam à frente dos seus olhos enquanto, sem soprar, apenas liberava a fumaça do cachimbo de estimação, Roberto relaxava. Se afundava de tal forma na poltrona de couro envelhecido que parecia se fundir a ela, e a cabeça se encontrava tão vazia que era quase como se ele não existisse. Ao que parecia, poderia ficar assim a vida toda naquele quarto que resolveu transformar em uma aconchegante biblioteca, a qual ostentava de forma pedante a qualquer visita. Um rangido da porta o resgatou de volta ao mundo. A porta esganiçava como o diabo, e levou o que pareceu a ele tempo demais para finalmente se ver aberta. E qual não foi sua surpresa ao ver num vestidinho leve de verão a mulher do café da faculdade! Levava um sorriso que não cabia no rosto, os seios inflados que não cabiam no decote e pernas roliças e firmes de mogno cuja beleza - tinha certeza - não cabia em palavras. A moça caminhou em direção ao nosso bem-aventurado professor (que de tanto querer fazer qualquer coisa, continuava imóvel) e, muda, - mas seu sorriso cantava um ode à própria beleza -, abriu seu roupão antiquado e sentou em seu colo. Pele com pele. Quente e intumescida, a carne macia de seu sexo escorregadio era febril. O pau de Roberto era o centro de seus sentidos, de sua vontade, o pau latejante de Roberto era o centro do mundo. E nada mais importava além do cheiro de alfazema e do cais, do riso tresloucado e da pele da mulher que já não era a mulher do café. Os corpos em simbiose entregavam-se a uma volúpia demente. Um ganido de cão na rua e não existia mais vestido de verão nem cachos de cabelos roçando seu ombro, nem lábios tateando em desespero seu corpo ressurreto. Apenas o suor permaneceu. O pobre professor suspirou, desconsolado.
      Roberto, 51 anos, se esporrou dormindo.
      O enrugado e grisalho adolescente não esperava o peso de hipopótamo que o bilhete teria em sua cabeça sempre tão organizada quanto um catálogo de endereços. Uma vez acordado, virou e revirou na cama, sem qualquer flerte com o sono, por horas. "Isso tudo é tão ridículo", era a síntese de seus pensamentos. A noite se arrastava em sofreguidão.
   
II  -  Salvação e equilíbrio

      É comum que se associe equilíbrio a controle, e admito que em parte dos casos esta relação está correta. Mas a rigor, manter o equilíbrio é manter a distância dos extremos, seja qual for o motivo da manutenção dessa distância. Um equilíbrio frágil pode esconder uma realidade constantemente no limiar da perturbação e da demência.

      O conceito de salvação só existe em contraponto ao da degeneração - com suas motivações e sua força irreversível. Este conceito também só faz sentido enquanto a destruição é um fim, e não uma potência colateral. Portanto, além de a salvação só existir enquanto negativo, é um negativo incompleto. Deixo duas situações específicas e bastante comuns: o indivíduo que não crê em qualquer coisa a não ser na própria existência, e por isso mesmo não pode ser salvo: sua vida tem o valor exato que decide atribuir a ela; a alma atribulada que, na podridão do mundo e no caráter de exceção dos sentimentos verdadeiramente puros, faz da própria vida a reprodução desse desacerto terreno, e a autodestruição é a busca de uma coerência existencial.

      Um bilhete, que nunca mais teve resposta. Este foi o gatilho para o professor, que despertou pra uma vida lasciva e cada vez menos ponderada. O veneno da dúvida quanto à carta o fez fantasiar situações excitantes e pouco prováveis, e o que era uma nova inclinação de caráter se transformava em necessidade primal de sexo, adrenalina e horror à rotina. Um escândalo o fez perder a cátedra na universidade, e outros escândalos afastaram definitivamente familiares e colegas. A solidão fomentava ainda mais a destruição e a sede sexual, em uma realidade em que a relação corpórea é a única forma de contato humano íntimo, ainda que incompleta como tal, que sobrou ao decadente Roberto.
      Foi achado em seu apartamento, tombado de costas no banheiro. Os olhos opacos negavam qualquer centelha de esperança, e a boca de cão raivoso mantida semiaberta numa figura detestável, se retorcia de asco de si próprio. O lugar era de tal forma caótico que não se poderia afirmar se foi roubado, ou se as pequenas coisas de valor já tinham-se tornado veneno. Na calçada do prédio, um garoto achava cinquenta reais, Mais à frente, policiais mexiam com uma garota bonita que atravessa a rua. A bolsa de valores teria, ao fim do dia, o pior fechamento do ano. O céu era azul e muito limpo.