19.7.14

POST 20.

I
      Eram 22h30 e todos os alunos se precipitaram à saída da sala, impacientes. Ora, se há algo que Roberto constatou nos vinte anos que lecionava é que, não importava a turma, dez minutos a mais de aula eram suficientes para infligir neles tormentos de tortura chinesa. A juventude é uma época estranha, pensou sem refletir, enquanto a manada disparava para fora. E apesar de sentir a rapidez dos anos e sua própria juventude muito próxima na memória, o fato é que sentia-se tão mudado desde a época de graduando que mal compreendia atitudes como aquela, que outrora vivenciara também. Era agora outra pessoa, em absoluto.
      No auge de seus 50 anos, o professor universitário gozava a plenitude de sua idade. Seu imutável comedimento satisfeito era espelho lógico da vida, que até ali, passara macia, leve e regular como as estradas arborizadas e de bom asfalto que levam aos subúrbios classe média-alta. Não se pode dizer que tenha passado por grandes conflitos ou dúvidas. Ao contrário, suas decisões mais importantes pareciam como que trazidas pelo vento, e lhe cabia seu cumprimento, numa espécie de crença rudimentar em um destino sempre favorável. A escolha pelo curso, pela ênfase nas pós-graduações, a saída da casa dos pais, a escolha da mulher de sua vida, o planejamento familiar, a concepção do único filho, cada grande amigo de longa data, o divórcio amigável, os investimentos imobiliários seguros, tudo parecia levá-lo por correntezas suaves. Dessa forma, não havia qualquer motivo para saudosismos: sua vida fora uma agradável e controlada preparação para o passo imediatamente posterior.
     Nenhuma destas considerações passava pela cabeça de Roberto quando, ao guardar lentamente suas coisas na mochila após a sala se achar vazia, notou um papel amarelo gema dobrado e caprichosamente deixado sobre a pilha de livros. Eram raras as vezes em que alunos tímidos pediam abono de faltas ou um trabalho para recuperar nota. Com efeito, poderia contar nos dedos. Também não era de todo inesperado: em toda turma havia bichos-do-mato, e o professor padecia do mal comum de seus colegas de profissão de nunca abrir e-mails. Assim, bilhetes lamuriosos, que tentavam compensar a ausência da possibilidade de convencimento através da conversação com altas doses de vitimismo piegas, por vezes apareciam sobre suas coisas. "Deve ser do cara estranho do fundo da sala. Só conheço a voz dele das vezes em que responde a chamada". Voltou a sentar na cadeira, porque não tinha pressa e esperava um texto mais ou menos longo e confuso (alunos desse tipo não tem ideia de como se reportar a um professor).
Professor, me ligue. XXXX-XXXX. Beijos!
      Nenhuma assinatura ou qualquer tipo de identificação. A letra parecia ser feminina, mas não era identificável a ponto de se conseguir ligar a alguém. O professor ficou atônito por alguns momentos, sentiu suas orelhas formigarem. Caiu em si e olhou em volta, caminhou a passos largos até a porta: não havia ninguém no corredor: o único sentido que uma brincadeira daquelas poderia ter seria justamente poder ver a reação do professor. Não estava ali quem tinha lhe pregado a peça. Eliminada essa possibilidade, o bilhete deveria ser sério. E o que fazer com aquilo? Roberto não sabia. Ficou com o bilhete aberto nas mãos, sem pousar o pensamento em nada. Ao diabo, finalmente pensou, enfiando com raiva os papéis e os livros e o bilhete na mochila.
      Absorto com as formas que se dissipavam à frente dos seus olhos enquanto, sem soprar, apenas liberava a fumaça do cachimbo de estimação, Roberto relaxava. Se afundava de tal forma na poltrona de couro envelhecido que parecia se fundir a ela, e a cabeça se encontrava tão vazia que era quase como se ele não existisse. Ao que parecia, poderia ficar assim a vida toda naquele quarto que resolveu transformar em uma aconchegante biblioteca, a qual ostentava de forma pedante a qualquer visita. Um rangido da porta o resgatou de volta ao mundo. A porta esganiçava como o diabo, e levou o que pareceu a ele tempo demais para finalmente se ver aberta. E qual não foi sua surpresa ao ver num vestidinho leve de verão a mulher do café da faculdade! Levava um sorriso que não cabia no rosto, os seios inflados que não cabiam no decote e pernas roliças e firmes de mogno cuja beleza - tinha certeza - não cabia em palavras. A moça caminhou em direção ao nosso bem-aventurado professor (que de tanto querer fazer qualquer coisa, continuava imóvel) e, muda, - mas seu sorriso cantava um ode à própria beleza -, abriu seu roupão antiquado e sentou em seu colo. Pele com pele. Quente e intumescida, a carne macia de seu sexo escorregadio era febril. O pau de Roberto era o centro de seus sentidos, de sua vontade, o pau latejante de Roberto era o centro do mundo. E nada mais importava além do cheiro de alfazema e do cais, do riso tresloucado e da pele da mulher que já não era a mulher do café. Os corpos em simbiose entregavam-se a uma volúpia demente. Um ganido de cão na rua e não existia mais vestido de verão nem cachos de cabelos roçando seu ombro, nem lábios tateando em desespero seu corpo ressurreto. Apenas o suor permaneceu. O pobre professor suspirou, desconsolado.
      Roberto, 51 anos, se esporrou dormindo.
      O enrugado e grisalho adolescente não esperava o peso de hipopótamo que o bilhete teria em sua cabeça sempre tão organizada quanto um catálogo de endereços. Uma vez acordado, virou e revirou na cama, sem qualquer flerte com o sono, por horas. "Isso tudo é tão ridículo", era a síntese de seus pensamentos. A noite se arrastava em sofreguidão.
   
II  -  Salvação e equilíbrio

      É comum que se associe equilíbrio a controle, e admito que em parte dos casos esta relação está correta. Mas a rigor, manter o equilíbrio é manter a distância dos extremos, seja qual for o motivo da manutenção dessa distância. Um equilíbrio frágil pode esconder uma realidade constantemente no limiar da perturbação e da demência.

      O conceito de salvação só existe em contraponto ao da degeneração - com suas motivações e sua força irreversível. Este conceito também só faz sentido enquanto a destruição é um fim, e não uma potência colateral. Portanto, além de a salvação só existir enquanto negativo, é um negativo incompleto. Deixo duas situações específicas e bastante comuns: o indivíduo que não crê em qualquer coisa a não ser na própria existência, e por isso mesmo não pode ser salvo: sua vida tem o valor exato que decide atribuir a ela; a alma atribulada que, na podridão do mundo e no caráter de exceção dos sentimentos verdadeiramente puros, faz da própria vida a reprodução desse desacerto terreno, e a autodestruição é a busca de uma coerência existencial.

      Um bilhete, que nunca mais teve resposta. Este foi o gatilho para o professor, que despertou pra uma vida lasciva e cada vez menos ponderada. O veneno da dúvida quanto à carta o fez fantasiar situações excitantes e pouco prováveis, e o que era uma nova inclinação de caráter se transformava em necessidade primal de sexo, adrenalina e horror à rotina. Um escândalo o fez perder a cátedra na universidade, e outros escândalos afastaram definitivamente familiares e colegas. A solidão fomentava ainda mais a destruição e a sede sexual, em uma realidade em que a relação corpórea é a única forma de contato humano íntimo, ainda que incompleta como tal, que sobrou ao decadente Roberto.
      Foi achado em seu apartamento, tombado de costas no banheiro. Os olhos opacos negavam qualquer centelha de esperança, e a boca de cão raivoso mantida semiaberta numa figura detestável, se retorcia de asco de si próprio. O lugar era de tal forma caótico que não se poderia afirmar se foi roubado, ou se as pequenas coisas de valor já tinham-se tornado veneno. Na calçada do prédio, um garoto achava cinquenta reais, Mais à frente, policiais mexiam com uma garota bonita que atravessa a rua. A bolsa de valores teria, ao fim do dia, o pior fechamento do ano. O céu era azul e muito limpo.
   
   
   
   

24.6.14

POST 19.

      Quando enfim chego no horário marcado, a merda da porta está trancada. É o pot-pourri da minha vida.
***
      Mas a espera tem alguma serventia. Tenho tempo de deixar todo o suor que brota do sovaco e das costas evaporar. Seria mesmo constrangedor aparecer suando em picas bicas. Por outro lado, meu nariz escorre e nem sinal de banheiro, o que também é constrangedor. Se chegassem a tempo, a porta estaria aberta, e eu me livraria apenas do segundo problema. Como atrasaram, me livro do primeiro. No dilema dos excrementos, acredito que saí ganhando, porque catarro a gente limpa na calça jeans, e suor não tem muito o que disfarçar... entre a aparência de higiene e a higiene propriamente dita, fico com aquela. Sempre.
***
      Sento no chão, de frente pro vira-latas tão velho quanto cansado. Nosso olhar se cruza e estaciona, e é a primeira vez que entendo como os olhos podem ser a janela da alma. Cachorro cansado e sofrido, deve ter apanhado pra caralho na vida. Aqueles olhos não são de privação, de fome ou de frio a que boa parte de sua espécie está destinada. São olhos de profunda cumulativa frustração, de tentar agradar a qualquer preço sem sequer ser notado. Da angustiante procura por aprovação fosse de quem quer que fosse.

      Pobre animal, tem plena consciência de que buscou a vida toda ser um bom capacho para pés sujos de merda, e mesmo nisso fracassou com F de fodido. E é essa consciência que o faz exprimir a cada arfada dificultosa sua indiferença pelo resto de vida que não parece fazer mais questão de preservar. Cachorro velho, logo se vai. Cachorro sortudo. Mas porque vejo um tom desafiador naqueles olhos empapuçados...?
***
     Entre fumar, limpar o nariz na calça e desvendar a cabeça de um cachorro, espero que alguém finalmente chegue. Mais uma entrevista de emprego, menos um dia. Chega a ser soturno procurar desesperadamente quem possa comprar um naco de minha vida. E, pior, não a vendo caro: ela me é inútil, e se possui algum valor, é o valor que o tempo tem para qualquer vagabundo. Para qualquer outro vivente, não vale mais que os trocados que pretendo receber. No fim das contas, não tenho sequer do que me lamentar.

13.5.14

POST 18.

      Não dá mais, Beto, foi o que ela disse depois de uma longa baforada de fumaça em direção ao teto. Respondi com um olhar de quem não está respondendo absolutamente nada, de quem não entendeu e não tem qualquer intenção de entender. Ela ficava emputecida com isso. Não era o torpor pós sexo, só não me surpreendi mesmo com aquilo. É disso mesmo que eu to falando, tentou recomeçar ela, superado o silêncio constrangedor da deixa sem resposta. Tu não te move. Estou tentando romper contigo, e tu continua sem reação, como se tivesse fumado todo beck do universo.
      Acho que a frase formulada a encorajou a continuar.
      O sol tá brilhando lá fora, as coisas estão acontecendo, e tu é alheio a tudo isso. As pessoas vivem, ambicionam, conquistam, e teu maior anseio é ser parte da mobilha desse quarto mofado? Tu me cansa, essa letargia me contamina. Achei que tu fosse intenso, por tudo o que escreve, pela forma como sofre e expressa a dor do mundo. Mas é deprimente estar com alguém que decidiu desistir de viver.
      "Dor do mundo" me doeu foi o estômago, expressãozinha megalomaníaca. Era essa a impressão que tinha de mim, um sofredor romântico com muito a acrescentar? Um sensível? Alguém com pretensão de sentir o mundo? Era burrice me superestimar dessa forma. Mas tem algo sobre ela que sempre admirei. A guria não abandonava sua aparente expressão controlada e altiva, tragando regularmente o cigarro e gesticulando com elegância de pluma no ar quase sem brisa. Então todo discurso dela, mesmo que estivesse implodindo em raiva e angústia, acabava soando a amargura fria. Tinha classe, e aquilo me deixava aceso. Seria muito bom vê-la traindo essa máscara agora.
      Entretido nesses pensamentos banais, deixei de escutar o que ela dizia. Estiquei-me pra pegar o copo com conhaque na mesinha de cabeceira e percebi que nem naquela posição minha barriga sumia. Captei palavras soltas, como 'vagabundo', 'irresponsável' e 'lixo de vida', o que confirmava: o mesmo velho falatório que ouvi de pais, conhecidos e mulheres. A vida toda.
      Era isso: ela finalmente tinha percebido que sou um derrotado. Meu espanto, e sempre vou me espantar com isso, é que se para mim esse é um axioma, uma pedra imutável sobre a qual construí um rudimento de existência, para as mulheres era padrão demorarem a perceber. E partiam assim que percebiam, obviamente. Um velho gordo ranzinza apático pobre sem perspectivas, e às vezes alguma das pequenas via algo em mim. E a gente fodia, ria, bebia, fumava, brincava, dormia, até que ela percebia exatamente com quem estavam perdendo o precioso tempo. Meu tempo não é precioso, ele não vale nada. Meu tempo é o caminho da decrepitude.

25.3.14

POST 17.

Quero beber gasolina
quero fumar direto do escapamento do motor
quero foder CADA CU DO MUNDO

Só me sinto vivo quando quebro
quando rasgo
quando explodo e cago em tudo

Porque na falta do que chamam sentido
sobra a rotina que
civiliza
esteriliza
sobra o inferno da repetição
Não vou nascer de novo
não quero enriquecer
meu lugar não é o céu

A cova é quem nos draga a existência
e é nela que encontramos todos
a rotina por excelência

Mas preciso ser visto como louco
como o demônio e o caos
E que nem na loucura nem na sanidade do mundo
eu seja visto como são

Eu não quero ser são

Eu não sou são

Quero gargalhar só quando não houver quaisquer motivos
e dançar sobre o túmulo de deus

POST 16. APELO

Filho,
nasça homem
nasça branco
nasça rico e heterossexual

Assim ninguém te enche
                           [o saco
                           [de problemas
                           [de porrada

E vai ser pra ti, e só pra ti
que o mundo vai girar
que a política
e a polícia
e o mercado
e a mídia
vão militar

E esqueça todo o resto
para não apodrecer
de remorso.

24.12.13

POST 15. MISSA DO GALO

Este ano Pedrinho se esforçava para ouvir o padre velho, gordo e efeminado na missa de natal, ao invés de pensar no porco recheado (semelhante ao padre, aliás), no refrigerante à vontade, nas frutas sobre a mesa que, se não eram gostosas, ao menos eram muito bonitas e que só se via naquela data e, claro, os presentes todos que aguardavam sob o pinheirinho de plástico, mais parecido com um limpador de privada. 
A igreja sempre o impressionou. O templo inspirava uma fuga de tudo o que vivia. Os padres travestidos, as pessoas cantando juntas aquelas canções arrastadas, todas sentando e levantando ao mesmo tempo, as velas... tudo era tão diferente do cotidiano! O garoto fitava as imagens todas exalando dor e angústia, e se sentia culpado. Não sabia bem porquê, mas acreditava que deveria compartilhar aquele sofrimento com elas. 
E Pedrinho lutava pra abstrair de tudo isso, como lutava para compreender as palavras do homem de vestido. Afinal, é o que se espera de um rapaz de 13 anos, não? Que ouça a missa, compreenda e garanta um lugar no céu e na poltronas da sala, quando recebessem visitas. E não contente em ser fanho, o padre falava baixo. Será que era de propósito, para testá-lo? 
Portanto, deveria compreender a tudo. Se não, não era homem feito ainda. Entre um amém e um hosana, o garoto olhava para a mãe, esperando a aprovação complacente da mulher, orgulhosa de seu homenzinho. Ela precisava de um homem na casa, e Pedrinho poderia enfim proteger às irmãs e à mãe. E tudo dependia, entre outras coisas, de entender as palavras de Deus. 
Como já era costume na capela, o sermão não se restringia ao nascimento do Filho de Deus, mas narrava toda a saga até sua ressurreição. Com boa parte já tratada, ali pela hora da crucificação, o rapaz flagrou-se com uma dúvida que o perturbou. Não era pela pergunta especificamente, mas pelo fato de que talvez não estivesse entendendo o suficiente aquele sermão para adultos.
Mãe - ele a puxa de leve pelo ombro - , Jesus sabia mesmo que iria morrer? 
Sua mãe, sem dar muita bola, responde que sim, Jesus sabia que morreria. Era a confirmação que Pedrinho esperava:
Mas ele conseguiria não morrer, né? Ele era filho de Deus, e fazia os milagres que queria... 
A mulher, visivelmente constrangida pela conversa em hora inoportuna, afirmou rapidamente que sim, Jesus era todo-poderoso e poderia sair daquela situação. 
Não era possível que o carpinteiro divino não tivesse pensado nisso, já que era filho de deus, e provavelmente o homem mais inteligente do mundo. Além disso, Pedro já tinha dado a ideia, os guardas já tinham desafiando-no a descer da cruz, e assim ele provaria pra todo mundo que realmente era o super-herói judeu. Então não era esse o motivo.
Mas mãe - ele emendou, e viu a mulher bufando impaciente - Jesus então escolheu se suicidar?
A escolha das palavras não poderia ser mais reveladora da cabeça do guri. 
Como assim, se suicidar, filho???, interrompeu ela, alterada a ponto de levantar mais a voz e atrair alguns olhares curiosos. 
Porque ficou brava? O garoto só estava querendo entender. Será que não estava pronto pra ouvir as palavras do padre? Digo, se Jesus sabia o que iria acontecer, tinha todo o poder pra mudar a situação, e poderia escolher, e escolheu morrer, era como se estivesse usando os outros para se matar. Como se o garoto, palmeirense como o avô e os tios, entrasse uniformizado na organizada do Corinthians e xingasse todo mundo e esperasse ser linchado. Era uma morte escolhida, e portanto um suicídio. O caso de Jesus ainda mais, porque ele poderia sair daquela situação em qualquer momento que quisesse. Jesus era um kamikase, um homem-bomba taleban.
Filho, Jesus morreu por todos nós! - ela disse, como se fosse a coisa mais lógica do mundo, ao que o garoto prontamente respondeu que seria muito mais proveitoso pro mundo que Jesus permanecesse vivo, fazendo milagres e pregando o amor por mais tempo. Afinal, o jornal da noite, as ruas cheias de gente largada, a maldade das pessoas, mostravam que o que ele ensinou não parecia ter feito muita diferença. Imagina o quanto de gente ele poderia ajudar, curar, ensinar... 
A essa altura, a irritação da mulher não era mais vergonha de chamar atenção da paróquia. Que absurdo, questionar Jesus assim! Um garotinho que mal saíra do colo! Filho - disse indignada -, Jesus não se suicidou, ele morreu para que nós não morrêssemos! Para nos salvar!
O garoto então sorriu, concordando. Tudo o que disse foi um "entendi" cheio de significado, como se tivesse ligado um interruptor na cabeça. A mãe retribuiu com juros a expressão de satisfação, apertou a mão do guri aliviada e voltou a escutar a missa.
Pedrinho entendeu meio que tacitamente que crescer talvez fosse isso, dissimular dúvidas e medos genuínos, fingir que está tudo sob controle. E voltou a ouvir a missa também, agora feito homem.

22.11.13

POST 14. BENTO GONÇALVES COM A SALVADOR FRANÇA

Num cruzamento de avenida sem movimento
Um carro diminui a velocidade para dar passagem a outro
E prontamente leva buzinaços de motoristas atrás, que espumam pela boca
e soltam fogo e fumaça pelas ventas.
Mundo estranho esse
em que até gentilezas
tem hora e lugar certos.

11.11.13

POST 13. SÍNTESE

E ele abre a mochila, pega um pacotinho de camisinhas e diz, jogando na cama, empolgado e com cara de sacanagem:
- Olha amor, o que trouxe pra gente!
E ela pega no reflexo, com a mesma empolgação e a mesma cara de safada, que se esvai em instantes:
- Ah, achei que era chocolate...

Eis o episódio revelador de todo o relacionamento.

10.11.13

POST 12. CRISTINA

        Nada, dentre todas as coisas mais belas ou mais imundas, nada me despertou atenção tão vítrea quanto os olhos de Cristina. Se antes meu olhar divagava vagabundo por aquela festa meia boca, à música desnecessariamente alta e às mulheres entediadas por péssimas companhias masculinas, foi no contato com aquele azul de águas paradisíacas que num estalido soube que havia algo maior e melhor que a mediocridade humana.
        Ela era um oásis naquele ambiente pestilento. A luz que emanava daqueles faróis em seu rosto me atraíram de forma irresistível. Apesar de mariposa embasbacada, não tive grande dificuldade em cumprir todo o ritual que se espera: paguei um drink, puxei assunto e procurei me esquivar do óbvio. Mas o óbvio soava como uma sirene em uma biblioteca de asilo, e quando me dei conta, estava louvando seus olhos abençoados. Conversamos amistosamente até que ela ficasse bêbada. 
        Não a chamei pra voltar pra casa comigo.
        Dias depois, encontrei aqueles olhos numa lanchonete do bairro. E nem por um momento acreditei que fora um lance de sorte. Eu sabia que ela morava na região, e passei a desviar para ali meu caminho rotineiro: a expectativa compensava o esforço de caminhar mais algumas quadras. Além disso, e considero de longe o mais determinante, meu desejo em revê-la era tão forte que não havia possibilidade de isso não acontecer. Era como a certeza em Deus, na morte ou na roleta. 
        É importante que eu explique que até essa série de fatos, jamais tinha me apaixonado por uma mulher. E já tinha estado com muitas. Não entendo a dificuldade que alguns homens tem em conseguir companhia. As mulheres imploram por atenção, por alguém que as admire ou ao menos fique excitado com suas tentativas em seduzir, e demonstram isso o tempo todo. É necessário duas orelhas e um sorriso na boca para levá-las à cama. Umas buchas de coca também são muito úteis, especialmente para as que costumo foder. E se há algo de asqueroso em como retrato as coisas, quero que fique claro que não tenho qualquer desprezo às mulheres em especial, não tenho qualquer desprezo que não tenha também a qualquer homem. Meu asco e insolência são generalizados. Como poderia ter qualquer reserva ou hesitação para tratar com pessoas, todas tão semelhantes a mim! Tão familiares em sua inclinação ao roubo, ao vício, ao sadismo! O fato é que, como indivíduos, negamos essas semelhanças funestas, e nos apegamos a particularidades justamente por sabermos o quanto todos os aspectos são iguais até o ponto do absurdo. É por isso mesmo, por exemplo, que as artes tem tão grande alcance: partem da mente o autor, ou seja, falam do particular, que nada mais é que um fragmento de pleonasmo do mundo, e num segundo momento as pessoas sentem-se representadas, todas elas, porque o particular é uma ilusão que preenche a consciência individual, e tudo o que existe é a repetição de erros, conceitos, formas de vida e sentimentos. Por isso não sinto qualquer receio ao lidar com quem quer que seja.
        E não posso dizer de forma alguma que cruzar meu olhar mundano ao de Cristina tenha-me feito mudar de pensamento. Ao contrário, apenas o reforçou. Cristina era a exceção por excelência, via em seus olhos a alma mais honesta e cândida que sabia jamais encontrar novamente. 
        Cristina falava muito, e a atenção que eu dava a encorajava a falar mais. Era nítido como chamava a atenção dos homens à volta, e apenas por um momento pareceu-me que era exatamente o que ela queria. 
        Saímos mais algumas vezes, e Cristina se decepcionou quando falhei em fodê-la. Aprendi rápido: tinha de imaginar qualquer outra mulher em seu lugar. O que ela talvez não entendesse é que o sexo depravado que tanto gostava negava toda pureza de seus olhos e a alvura de cântico eclesiástico de sua pele uniforme. Assim, nunca comi Cristina, e fodi tantas mulheres enquanto só saía com ela. 
        Aos poucos, fui descobrindo em Cristina uma mulher fútil, promíscua, tão ordinária quanto qualquer outra. Passou a mentir sobre onde ia, com quem estava e todas essas questões que em outros tempos jamais me passaria pela cabeça perguntar. Aceitava suas respostas infantilmente: era de suma importância que eu acreditasse. Um Tomé às avessas. 
        Num sábado à tarde, ela bateu na porta do apartamento. Marcas roxas e arranhões nas costas mal cobertas pelo vestido, a maquiagem borrada fazia dela um palhaço deprimente. E foi em um lampejo que vi Cristina como humana. Sua figura angelical não era mais a materialização de sua virtude, mas uma insuportável incoerência. Ela era a santa que fodia e continuava virgem, eu havia caído numa mentira de 2000 anos. 
        Ela passou a me explicar de forma muito nervosa e confusa, sendo interrompida por repentes de choro e soluço, que saiu com um cara que conhecera na mesma noite, e que já na casa dele, foi estuprada por mais dois caras até apagar e acordar largada na auto estrada de madrugada. Veio direto pra minha porta, antes mesmo de chamar os porcos. 
        Pedi que ela esperasse no sofá, enquanto pegaria um copo de água. Na cozinha, minhas pernas tremiam de forma incontrolada. Imaginava como numa sequência de fotos ela se divertindo com o cara da forma mais asquerosa possível, a forma que sempre me neguei a me divertir com ela. Imaginava aqueles olhos, aqueles olhos que poderiam me salvar, corrompidos por essa mulher imunda. Como tinha coragem de profanar seu corpo e sua alma, como uma mulher comum? Ela era o messias que nunca viria, toda esperança de bondade, pureza e amor que outrora me soavam como mitos inverossímeis da boca de religiosos ou das campanhas burguesas de fim de ano. E aqueles olhos continuavam lá, mentindo pra mim, tirando toda ordem e coerência da história da miséria humana, a ordem podre que eu já conhecia, da qual sabia exatamente o que esperar. 
        Voltei com o copo com água e estendi a ela, num dos raros momentos em que as ideias se embaralham a tal ponto que mesmo segundos depois não sabemos dizer o que estávamos pensando. Cristina, sentada e ainda chorosa, fitou meus olhos, que me encantavam pela última vez. Como um bicho que sabe que será morto, ela arregalou ainda mais aquelas bolitas de engodo, o objeto de minha desgraça. Maldita medusa, foste desmascarada! 
        Olho a faca  suja até o cabo, pingando devagar. O sofá absorve com dificuldade o sangue que  escorre da cavidade ocular completamente oca de Cristina. Espero pacientemente que os gritos tragam a polícia, isso não importa. O cosmos volta à ordem, Cristina volta a ser só Cristina. 

7.11.13

POST 11. VIDA DOMINATRIX

Com uma cinta caralha repugnante, grossa e emborrachada
Ela sodomiza, um por um,
a cada ser que se dignifica a chamar humano
Talvez seja o carma inerente de nascermos
já fodendo nossas mães.
quem disse que não há justiça?

Há os que sublimam a dor e deixam
de se importar. Estão sempre em outro lugar
um lugar sempre mais agradável.
O cheiro do eucalipto e do milho cozido e daquele perfume que só Daniela usava
suplanta o cheiro de sexo sujo
e o cheiro de toda crueldade

Há os que gostam
esperam entusiasmados com uma bola
atada à boca de tamanho e cor de maçãs argentinas.
Fazem lavagem anal e entumecem
o rabo de vaselina.
Gemem, gritam, riem e olham pra trás babando.
Putinhas da Vida.

Toda essência da dominação, do desprezo e da perversidade
aglutinados por sob aquela roupa de látex.
Sua boca é vermelha de sangue que não é seu,
seus olhos, negros como todo futuro.
Supera qualquer besta apocalíptica
porque é presente. E fode com raiva.

Quanto a mim?

dor
sangue
merda
A raiva é uma ferida pulsante. Sua cicatriz, o lamento dopado.

Quanto a mim?
Para mim sempre será estupro.

1.11.13

POST 10. BIFURCAÇÃO

E o gato todo encharcado, na manhã de segunda-feira fria, chuvosa e desolada de pós-fim de semana prolongado, daquelas que mesmo os bichos devem detestar, vira o lixo procurando algo pra disfarçar a fome. Ele se encolhe como se fosse capaz de passar ileso entre as finas agulhas geladas de água.

Bicho desgraçado: ou chuva e frio, ou fome.

23.10.13

POST 9. ALEGORIA

Um verme nasce em meio à bosta
em meio a outros vermes numa suruba precoce
caga e se debate
e come a merda e a merda dos outros vermes e vermes mortos
Não sabe onde começa seu corpo 
não sabe onde termina

O verme em meio à bosta
não sabe quão asquerosa é sua vida
porque não conhece nada além da merda, e seus semelhantes
não conhecem nada, 
nada
além da merda.

às vezes há alguma coisa mal digerida
do intestino do bicho que cagou ali
uma carapaça de inseto, um naco de fruta, uma casca de árvore
E os vermes degladiam-se por essas pequenas amostras aleatórias 
de felicidade
Algo para matar, algo para morrer
Algo para viver.

22.10.13

POST 8. RELEITURA DESNECESSÁRIA

Stoya é mais bela que a puta que faz ponto na minha rua, 
mas a Stoya não é mais bela que a puta que faz ponto na minha rua.
Porque Stoya não é a puta que faz ponto na minha rua.
Stoya tem inúmeros views 
e prestígio, e muita grana ainda. 
Para todos aqueles que a vêem e não podem ESTAR LÁ,
Stoya são suas mãos.
Stoya faz espanhola
e parece realmente gostar de anal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é a puta da minha rua
e para onde ela vai
e donde ela vem.
E por isso, porque pertence a menos gente, 
é mais livre e melhor a puta da minha rua.
Por Stoya escorre o Mundo.
Para Stoya há a grana,
e a façanha para aqueles que a devoram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
da puta da minha rua.
A puta da minha rua não faz pensar em nada.
Quem está coxando ela está só coxando ela.

POST 7. PREFERI IR JOGAR SINUCA

Me disseram
que ela era a mulher perfeita
com sorriso perfeito
olhos perfeitos
boca perfeita
a dicção, meu deus, era perfeita
e eu não sabia o que pensar
porque ela era perfeita demais
pra foder
pra cagar
pra mentir e humilhar e destroçar o coração de quem busca uma mulher tão polida com lixa d'água

Mas eu sabia que ela fazia tudo isso.

21.10.13

POST 6. 3h47

Os pensamentos podem enfim
se alastrar
por todo espaço do centro vazio
da cidade vazia.
Essa garota eu fodia olhando bem no fundo
dos olhos
fazendo-a expor toda torpeza de sua alma reprimida
E ela fodia como se eu entendesse
e aprovasse
E eu de fato aprovava. e aprovaria muito mais mesmo sem entender.
Quero que tu mije em mim
me falou uma vez, com meu trambolho trabalhando em sua boca
Ria, se tocava e gargalhava como uma colegial besta
e botava a língua no jato mirado em seus seios pequenos de puta francesa
E pensei
se ela quer ser humilhada
que seja trepando
e não por um pedido anotado errado de um cliente na lanchonete.
Era louca, mas não o suficiente pra não ir embora
mais cedo ou mais tarde. como todas elas.
Foi mais cedo.
E me sobra a brisa da noite
e a sensação de poder respirar de verdade
e o velho fuçando as lixeiras - a cidade lhe pertence
E as luzes alaranjadas
Elisa procura um pacto
um dono
um carrasco
Adeus Elisa!
Só não sei se posso
te desejar
sorte


17.10.13

POST 5. ENXURRADA

Ela levou as moedas de cima da cômoda
levou parte de minha sanidade
levou toda erva que eu tinha
e meu sêmen impregnado na pele.

Ela levou uma blusa quase nova
e sonhos meus mais novos ainda
levou meus comprimidos pra dormir
logo agora, quando mais preciso.

Levou meus cigarros todos
minha concentração, metade dos meus sorrisos
e um pouco mais de mim.
Além de levar de volta tudo o que trouxe.

7.10.13

POST 4. COMIDA QUE FAZ MAL.

- Ai, to enjoada de novo, amor.
- Tua mãe tem que botar menos óleo no arroz.
- Pára com isso, não é da comida da mamãe. Coisa feia, Otávio! comer lá todo domingo e reclamar da comida?!
- Você quem reclamou de enjôo. E você quem insiste pra comermos lá.
- Tsc.
...
...
...
- Amor...
- Hm.
- Se de repente a gente engravidar, tu já chegou a pensar num nome da criança?
- Aborto. Aborto Oliveira. 

POST 3. REMINISCÊNCIA

      Era recém iniciado na boa e na má sujeira do mundo dos adultos. O gosto amargo, enjoado e pouco convidativo da boca de Bete foi a primeira experiência do rapaz com o tabaco.

      Lá se vão vinte anos e uma eternidade; tudo o que restou de Bete ele sorve daquele seu cigarro habitual de fim do dia. 

POST 2. COLETIVO

Esgueiro-me por entre corpos estupidamente estáticos, busco espaço onde não há. (Então é assim que cheira gado humano?). Por fim, estaciono.

O contato físico, sem qualquer correspondente afetivo, violenta. Soft-estupro.

Vai e vem de frenadas e arranques! Bichos confinados, desconfiados.

Paus e bundas se roçando o tempo todo. Cheiro de boceta na minha orelha que se sobrepõe a todos os outros: manhã de sorte. Às vezes o ombro é cabide de pica, e tento me encolher até sumir.

Mas aquela boazuda ali, ela deve sofrer. Coitada da boazuda, atrai mãos e quadris estrategicamente distraídos como atraio desgraça.
.

Todos percebem, ninguém demonstra. A dissimulação é um dom coletivo na orgia matinal.

22.9.13

POST 1

  (ao ler o texto abaixo, imagine o autor andando a passadas largas, enquanto narra. Como naqueles comerciais da nextel)
      Olá! Sou um zé ninguém. Sem talento, sem gana, sem tesão. A vida às vezes lança pedras no nosso caminho, e quando uma pedra é arremessada no meu, geralmente acerta a canela. Recolho pra fazer meu castelo? Não, fico com raiva e a chuto, fodendo com o mindinho do pé. Sou gordo, sou feio, sou pobre. Sou punheteiro de mão cheia. Ou melhor, não tão cheia, já que também não nasci com essa sorte. Sou o típico fracassado em qualquer área, e abstraio de tudo isso com erva, bebida, e com a convicção de que a vida é uma merda pra grande maioria das pessoas, que se enchem de tarefas pra não pensar no assunto. 

24.2.13

POST 22.

Sou o bicho morto no canto do caixote em que o garotinho sádico guarda seus insetos Sou o sal insípido das Escrituras Sou um Dom Quixote sem convicção, o mendigo de classe média. Sem talento, sem grana, sem tesão. Não sou nada? Sou um apêndice saudável. Edit: não mais saudável.